Contratos de seguro: o inadimplemento do segurado e a sua constituição em mora

Contratos de seguro: o inadimplemento do segurado e a sua constituição em mora

Imagine que ao longo dos anos você adimpliu com todas as suas obrigações perante sua seguradora e, então, por uma mera distração você não pagou a fatídica parcela do mês de março, por acaso o mesmo mês em que, pela primeira vez em sua vida, seu veículo foi furtado.

Imagine, ainda, que uma doença fatal acometeu uma pessoa querida de sua família, que, em decorrência disso, não pode laborar nos últimos meses e cumprir com suas obrigações, deixando de pagar, inclusive, a prestação de securitização e infelizmente faleceu.

Ainda, numa hipótese menos dramática, você tirou férias e não agendou o boleto do seguro residencial e seu aparelho de tv novo, cheio de recursos virtuais, foi furtado.

Essas hipóteses parecem esdrúxulas, mas não estão tão longe da realidade. A inadimplência nos contratos de seguro verificada justamente no momento em que os segurados precisam acioná-lo, com a consequente negativa de cobertura pela seguradora, é assunto tão recorrente que tribunais de todos o país já se manifestaram sobre o tema.

Fato é que, em nossa vida cotidiana, é extremamente possível incorrermos em inadimplências pontuais, seja por esquecimento, seja por condições financeiras, seja por impossibilidade de fazer o pagamento, impossibilidade física ou virtual.

O raciocínio das seguradoras pareceria correto de um ponto de vista da lógica contratual: havendo inadimplência, não há cobertura da apólice, da mesma maneira como, faltando o pagamento de sua mensalidade na academia esportiva, você não poderia gozar dos serviços e adentrar suas instalações.

Mas a seguradora não é sua academia, por isso conduta de uma seguradora deve estar amparada não apenas na legalidade, como também em princípios fundamentais do direito, pois, ao se contratar um seguro, o que minimamente se espera é cobertura no momento do sinistro – sem surpresas.

O artigo 763 do Código Civil determina: “Não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes da sua purgação”.

A mora pode ocorrer de duas formas: (i) ex re, decorrente do próprio inadimplemento da obrigação, independendo de provocação do credor (Artigos 397, 1ª alínea, 390 e 398 do Código Civil de 2002); ou (ii) ex persona, que ocorre quando o credor deve tomar certas providências para constituir o devedor em mora (notificação, interpelação, etc.), desta forma a mora apenas se aperfeiçoa por provocação do credor (em outras palavras, o credor deve constituir em mora o devedor) (Artigo 397, 2ª alínea do Código Civil).

Exatamente sobre este aspecto reside a extensa discussão perante os tribunais de todo país com relação aos contratos de seguro: a mora do segurado nos contratos de seguro decorreria do simples inadimplemento ou dependeria de constituição prévia da seguradora? No primeiro caso, defende-se a suspensão automática da cobertura que equivale à resolução do contrato por inadimplemento, ao passo que, no segundo caso, haveria a necessidade de constituição em mora do devedor previamente ao sinistro, sob pena da seguradora incorrer em danos morais indenizáveis pelo atraso no pagamento do prêmio, além do próprio prêmio em si.

Tratando-se o contrato de seguro de um contrato de adesão, regido pelo Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência construiu sólido repertório acerca da necessidade de constituição em mora do segurado para resolução/suspensão da securitização.

Cite-se recentíssimo julgado do Distrito Federal nesse sentido, que inclusive menciona a jurisprudência consolidada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça com relação ao tema, pontuando que o atraso no pagamento de parcela do prêmio por si só não enseja o desfazimento do contrato, mostrando-se necessária a interpelação do segurado e a sua constituição em mora:

CIVIL, CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. SEGURO DE VEÍCULOS, RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO. INADIMPLÊNCIA. AUSÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO EM MORA DA SEGURADA. BOA FÉ OBJETIVA. RELAÇÃO DE CONSUMO CDC. ART. 6º, III, 46 E 54, § 4º. COBRANÇA APÓS A RESCISÃO. VEDAÇÃO DO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO. RESTABEÇECIMENTO DO CONTRATO. DANOS MORAIS. NÃO CONFIGURAÇÃO. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. […] 4. O inadimplemento das parcelas pactuadas não enseja a imediata rescisão do contrato de seguro. É necessário que se constitua em mora o segurado, antes da ocorrência do sinistro, pois o relacionamento consumerista pauta-se na transparência, informação e boa-fé (CDC, arts. 6º, III, 46 e 54, § 4º). 4.1. Este é o entendimento do STJ: “(…) 2. Na linha da jurisprudência deste STJ, não basta o atraso no pagamento de parcela do prêmio para o desfazimento automático do contrato de seguro, sendo necessária a prévia constituição em mora, por interpelação específica.” (…) (AgRg no REsp 1104533/RS, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 01/12/2015). […] (TJDF, Ap. 0003810-25.2016.8.07.0010, Rel. Des. João Egmont, j. 07/03/2018, 2ª TURMA CÍVEL, DJE 12/03/2018)

A matéria já foi inclusive objeto de consolidação em enunciados da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, realizada em 2006: “373. Para efeito de aplicação do art. 763 do CC, a resolução do contrato depende de prévia interpelação”; “371. A mora do segurado, sendo de escassa importância, não autoriza a resolução do contrato, por atentar ao princípio da boa-fé”.

Havendo, portanto, recusa da seguradora ao pagamento do prêmio por mera inadimplência pontual, necessária a verificação, preferencialmente auxiliada por advogado, para se entender se preenchidos os requisitos legais e jurisprudenciais da constituição em mora do segurado devedor.

Esta nota não tem o propósito de esgotar o tema, nem busca elucidar a questão de maneira simplista. Para além do entendimento mais difundido com relação à constituição em mora do segurado, há outras tantas discussões que reclamam solução: (i) deve a constituição em mora, pelas vias extrajudiciais, ser recebida pelo segurado? (ii) o retorno do aviso de recebimento da carta A/R no endereço do contrato e recebido por terceiro que declara ausente o destinatário ilide a mora? (iii) a constituição em mora de pessoa falecida, anteriormente ao sinistro, possibilita a recusa no pagamento do seguro ao beneficiário (terceiro)?

Essas questões não estão findadas e resolutas pelo poder judiciário, há teses e argumentos para ambos os grupos de interesse envolvidos, segurados e seguradoras, e como matéria amplamente discutida, ainda é necessária sua judicialização.


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